
Resenha crítica
Breno Fernandes
Eu não sei dos bastidores da escrita de “Quando a luz desaparecer nada vai se alterar no universo”, livro de crônicas do jornalista e escritor baiano João Mendonça. Mas arriscaria dizer que, embora lançado em 2018, o livro reúne textos que começaram a ser gestados no início dos anos 2000 ou que foram em busca do resgate do estilo que vigorou naquela época, na então chamada blogosfera — na literatura feita em blogues. Não é um estilo que meu gosto priorize. Sou um sujeito essencialmente da narrativa — mesmo na poesia, elementos narrativos sempre se destacam nos textos que me impressionam — e vejo mais como limitação que qualquer outra coisa minha incapacidade de ser arrebatado por escritos marcadamente líricos ou simbolistas. E logo, de analisá-los. A despeito disso, arrisco atestar um excesso de simbolismo nas crônicas de João. Um excesso deliberado, assim como no barroco o rebuscamento era intencional. Tal intencionalidade, pelo que me lembro, na história da literatura contemporânea brasileira, viveu seu auge justamente na era dos blogues.
E, é bem verdade, ressurge agora, depois de breve hiato, um pouco diferente porque constrangida pelas limitações do principal meio em que circula, o Instagram, e ao mesmo tempo influenciada pelo espírito da época, que não tem mais nada a ver com o da era dos blogues. Saiu de cena o beatnik digital, o hippie da internet 1.0, o agente da contracultura virtual, e entrou o escritor influencer, quase yuppie, businessman dos likes, capaz de escrever textos que pouco parecem expressões de sua subjetividade ou manifestações de uma postura estética ou moral, e mais se assemelham a mimos para o leitor. Presentes prêt-à-porter. Ou a printer. Mas de volta aos blogues. Houve quem chamasse pejorativamente o estilo de prosa poética que era bastante difundido na blogosfera de lispectorianismo ou de miacoutismo. Acho injusto com Clarice e com Mia, que são sobretudo narradores. Naqueles textos — dos quais os “Quando a luz do sol…” são um claro herdeiro, um filho tardio? —, o foco maior era produzir ou atualizar imagens, alegorias, metáforas literárias.
Quase como quem diz: bom, os programadores nos deram os códigos, os webdesigners nos deram os templates, então qual é a nossa missão, nós que trabalhamos com a palavra? Ora, inserir a linguagem! Mas não qualquer uma. Antes, linguagem condensada, impregnada de sentidos: aquilo que T. S. Eliot chamou de literatura. Dessa empolgação, dessa motivação semiconsciente adveio o excesso. E o meu problema com ele é que sempre — antes nos blogues e agora neste livro — me distrai, me afasta, às vezes me causa tédio, noutras irritação. Afinal o tempo todo me sinto impelido, obrigado a parar para contemplar as imagens poéticas do artista. É como se o narrador-eu-lírico fosse um guia afobado que entra comigo numa galeria e não me deixa quieto hora nenhuma, nenhum minuto, não me dá nem tempo de olhar para a parede branca ou para as pessoas ao redor e assim descansar o espírito e os olhos antes de saltar de uma obra para outra. (Aliás, o fato de a edição de “Quando a luz do sol…” ter optado por
não sinalizar onde começa e termina cada texto me deixou sufocado
e confuso. Era a ausência da parede branca.)
não sinalizar onde começa e termina cada texto me deixou sufocado
e confuso. Era a ausência da parede branca.)
Há também de se levar em conta que, quando você opta por trabalhar com o excesso, invariavelmente vai ter de lançar mão do que já se tornou gasto, clichê, envelhecido. Em “Quando a luz do sol…”, acontece muito com os elementos da natureza, e é uma pena, pois tal demanda que o texto me faz, de me sentir arrebatado pela lua, pelo vento, pelo chuva, isso acaba sombreando e me tirando o fôlego para o que é mais singular (e minoritário) no livro, frases que, no detalhe, me mostram que tem alguém no texto (ou por trás do texto) e que esse alguém se parece comigo. Sim, quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo. Nem quando a gente desaparecer, e o vento, a lua, a chuva continuarem a existir. Por isso me interessa sobretudo o humano que se revela, por exemplo, em “...os pés obedecem ao calor do chão…” — frase singela, quase invisível no meio de metáforas vistosas, mas que me comoveu à beça, me levou à infância interiorana, da amarelinha na calçada de casa, e também aos raros dias de praia da vida adulta. É o que me interessa: notar o sol
alterando meus passos.
alterando meus passos.
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Aforismos legais para mesas de bar (ou para umas camisetas hype)
Gustavo Rios
Em minha opinião, quando um escritor nos dá alguma frase boa e curta, daquelas que nos orgulhamos em repetir em mesas de bar, geralmente ele está no caminho certo.
Evidentemente, tais frases-de-efeito devem ser o resultado de depuração, de um processo coerente, de literatura boa e da reflexão. No caso de João Mendonça, identifiquei algumas dessas pérolas. E em todos os casos as tais frases me trouxeram a certeza de que o livro dele é bom.
Em tempos de “lacrações” e “memes”, pode ser perigoso destacar algo do tipo num escritor. Todavia, considerando o contexto a que essas frases (bacanas e eficientes) estão submetidas e o efeito direto que elas podem causar, acho que vale a pena arriscar.
O fato é que eu não poderia fingir não ter visto coisas como as que seguem: “Assim é a vida: uma sensação de dúvida intermitente”; ”A saudade é o sonho na contramão”; “O mundo transformou-se numa máquina quebrada que se repete contra a vontade dos homens”; “O vento é a chave que transpõe portas”; não esquecendo a já citada, “O erro da palavra é o erro da vida”.
Sabendo que tais aforismos não surgiram de forma isolada e não surgiram para serem “aforismos”, e que eles são, antes de tudo, consequências de parágrafos bem trabalhados, concluo que a intenção de Mendonça não foi “lacrar”. A coisa meio que brotou como final, meio, mote ou princípio; como boa prosa, boa poesia.
Dessa forma, esse autor baiano, além de nos agraciar com um texto fluído e bacana, nos oferece pensamentos que valem uma dessas camisas legais que a moçada usa em saraus – ainda que eu ande meio desconfiado com essa turma; coisa de quem está beirando os cinquenta-de-idade.
Outro ponto a ser destacado é o olhar de Mendonça que também parece capaz de enxergar a conjuntura social e política (acho que as manifestações de 2016 mexeram com ele de alguma forma), muitas vezes reagindo a ela quase imediatamente (ele caminha pela cidade e vê; depois, em seu quarto, discorre sobre). Reação trabalhada com a mesma pegada poética e metafórica de sempre.
“Ontem, o fogo queimou lojas e as praças foram fechadas por precaução. O menino de rua viu tudo do alto da árvore da vida. A mesma árvore que testemunhou inúmeros massacres contra o povo desarmado de ódio e ávido por lutar. O menino viu tudo e não contou a ninguém porque ele vivia sozinho e nesse mundo estranho ele só conhecia a ele mesmo.
O fogo se alastrou com força em direção às margens dos palácios dos brancos. Logo o acusaram e seu rosto parecido ao de tantos bandidos certificava que ele se tratava de um bandido mesmo. A polícia foi atrás dele porque lugar de menino é atrás das grades.”
A infância como tema é também algo presente. E marcante. No caso de Mendonça, boa parte dos trechos mais comoventes nasce daí:
“Deixei então a pá encostada na parede e comecei a cavar com as minhas próprias mãos. Logo percebi que tinha anoitecido rapidamente, desde cedo estávamos cavando. Foi quando comecei a encontrar os primeiros objetos.
O relógio preto que meu pai me deu de presente quando fiz dez anos, a foto de minha primeira namorada, a bola de basquete, o badogue com que eu brincava atirando pedras, o murro que eu levei na cara do meu melhor amigo, os carrinhos de ferro que eu colecionava, o grito da professora, meu sonho de ser astronauta, meus óculos quebrados, a imagem que tinha de Deus, o medo da morte, todos os fantasmas que vinham me atormentar à noite, as músicas de Moraes Moreira, o fim do mundo, o mendigo que morreu na porta do meu prédio, o sorriso de minha irmã, minhas primeiras observações sobre o sol, o escuro das escadas vazias, as mulheres velhas que me assustavam, as cores dos potes de tinta com que eu pintava, a barraquinha de camping…
Continuamos cavando, até que meu sobrinho olhou para tudo aquilo que estava exposto e disse: ‘Todas essas coisas não são mais suas. De quem são?’.”
Apesar de longo, defendo que o trecho acima é digno de ser lembrado; vamos combinar?
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Breves comparações
No quesito paralelos-e-comparações (estou tentando ser didático, tenham paciência), outros autores e livros me vieram à mente na leitura de Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo: Lupeu Lacerda e seus “prosoemas”, pela vontade de romper a couraça da linguagem a partir de observações “puxadas” do trivial; José Agrippino de Paula e seu PanAmérica, pela liberdade na criação de cenários, cenas, percepções e possibilidades; e, finalmente, Richard Brautigan, com seu livro Pescar truta na América, pela atemporalidade, pela carga metafórica e pelo tema “vida adulta”. O livro de João Mendonça também me remeteu a outro publicado no Brasil em 1995 pela José Olimpo, chamado Primeiro o amor, depois o desencanto (e o resto de nossas vidas), do canadense Douglas Coupland. Embora ambos sejam bem diferentes na forma e nas intenções (2).
O autor canadense nos mostra uma face bem melancólica da vida, todavia. João, apesar de tudo (incluo aí a homenagem a um tio, no que suponho algo marcante e talvez grave), nos traz alguma esperança. Com uma boa dose de leveza e outro tanto de espiritualidade não no sentido religioso, mas da transcendência, Mendonça se afasta da tristeza vã e segue.
Portanto, e esquecendo um pouco essa coisa minha de comparar-para-parecer-um-gênio, ainda que o Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo tenha sido catalogado como crônica, eu não o vejo dessa forma – não simplesmente. Nesse gênero textual e literário (por que não?), em que nomes como Sabino, Rubem Braga e, aqui em nossa vizinhança, Kátia Borges (também poeta e jornalista), são referências de pompa, creio que o João Mendonça se sairia bem. Entretanto, a sua habilidade em ampliar a linguagem acabou transformando seu livro num trabalho de maior alcance – ainda mais sabendo que as 89 “crônicas” foram selecionadas entre cerca de 300 textos prontos, num trabalho que contou com a ajuda preciosa do escritor e fotógrafo Tom Correia.
Dessa forma, afirmo que mesmo que o leitor se depare vez ou outra com abstrações, sugiro se deixar levar pela beleza e pela poesia contida neles, pois, assim como qualquer viagem, muitas vezes esbarramos em horizontes aparentemente confusos, mas não menos necessários.
Para mim, parceiros, a viagem com João valeu cada minuto. Assim como valeram também as passagens. Tanto a de ida quanto a de retorno.
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Expondo « a verdade no meio da tirania », o coro de personagens de João Mendonça
Alex Garrel
Tradução: Catherine Lunet
É o primeiro livro de um autor de Salvador da Bahia que tem "pouca curiosidade" e que "lê pouca poesia", como me confidenciou numa noite de março. Estranho. Este livro de doze contos, "independentes umas das outras", rigorosamente seleccionados, confronta, no entanto, quase sem tréguas, existências rotineiras e isoladas com desfechos abruptos e repentinos. João Mendonça gosta de dizer que "observa muito", mas "não julga" as suas personagens. No entanto, a brevidade dos contos contidos neste "O cansaço dos outros" revela que o ambiente social das personagens emerge logo nos primeiros parágrafos. Quase nunca estamos entre os necessitados, mas sim no meio de vidas abastadas, na memória de pactos familiares selados ou no ardor de amizades adolescentes firmes. Onde os encontros improvisados ou preparados com as diferenças sociais, ou mesmo com seus abismos, só aparecem raramente, a não ser na intrigante história intitulada "Amor", que carrega em si toda a alteridade presente no Brasil. Na minha opinião, uma historia muito curta que vale a pena desenvolver.
Por outro lado, o que surge repetidamente nestas doze histórias, sempre escritas com fluidez, é a "dívida" que quase todas as personagens carregam. Uma dívida de responsabilidade paternal para com o filho, uma dívida moral para com o tio hipócrita, uma dívida para com os amigos íntimos do falecido pai, uma dívida social para com os colegas de trabalho - é como se João Mendonça quisesse reviver o passado e, ao mesmo tempo, acabar com ele de uma vez por todas, embora não deixe de descrever vidas tão enraizadas na rotina que a mais pequena renovação é impossível. Apenas finais violentos podem pôr fim a estas vidas impossíveis e sem sentido. Exceto, em particular, no conto intitulado "Ménage", onde a intrusão de uma personagem artística, quase um anjo, no seio de uma relação amorosa alimenta e reforça a possibilidade de um futuro radioso, mas privado.
Mas as personagens do livro e os seus desejos não estarão sempre em paz, longe disso. No primeiro conto, o autor expõe uma vontade reacionária de destruir tudo, de acabar com tudo, através de actos que parecem remeter-nos para a afirmação de André Breton, em 1929, de que "o ato surrealista mais simples consiste, de revólver na mão, em sair para a rua e disparar ao acaso, tanto quanto se puder, sobre a multidão". * Com a singularidade de que o personagem criado por João Mendonça não "atira" ao acaso, mas em alvos familiares ou conhecidos, enquanto perambula pela cidade de Salvador.
Partindo dessa possibilidade ultraradical, os personagens dos doze contos exploram o alcance de uma dialética que deveria ser um farol, mas numa utopia. Embora esses caminhos sejam todos diferentes e descritos isoladamente, e se concretizem na sua diversidade, eles provam pela sua atitude - como o mendigo faminto Vitor, ignorado, mas conhecido há tempos de um pequeno bairro da cidade, em "Templo íntimo", que a compartimentação social, ou mental e imposto pelo encarceramento psiquiátrico, como na segundo conto, "Três Demônios", apesar de aparentes cruzamentos, permanecem as sementes da solidão e da renovação certa da infertilidade criativa que varre toda a esperança de uma verdadeira compreensão e "comunhão" entre os seres humanos.
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O coração vermelho do homem sem guia
Wladimir Cazé
Brevíssimo romance com um livro de poemas dentro, “O sol partido” (2014), do escritor baiano João Mendonça, conta uma história de amizade e amadurecimento, composta pelos encontros e desencontros de cinco rapazes numa Salvador ensolarada. O enredo carrega um forte sentimento de comunhão juvenil que é rompido pela constatação, por parte do narrador, do distanciamento das relações e da finitude dos verões despreocupados e felizes. Ao contrário dos dois amigos que vão embora – um emigrado para o gelado norte europeu (Dinamarca), o outro para as terras frias ao sul (Argentina) –, o narrador se fixa em sua cidade calorosa, sem abandonar jamais o terreno familiar de ruas e parques. Num gesto memorialístico, ele tenta tirar uma lição de vida das separações quase sempre inevitáveis que o tempo provoca.
Com certa dose de realidade, alguns logradouros e lugares verdadeiros de Salvador são citados (Instituto Alemão, Sebo de Brandão), mas tudo acontece num mundo paralelo maravilhoso, onde as pessoas podem (literalmente) voar. Beirando o terreno onírico e alegórico da fábula, rezas e danças em grupo confluem para rituais de voo coletivo, liderados pelo ousado Rasgo, que atrai os amigos Roque, o narrador e um casal (“meu amigo” e sua mulher, Marikó) a explorar suas asas: “No retorno do voo, no controle da respiração, voltávamos a habitar o mundo sem nos preocupar se estávamos imersos na realidade ou não” (p. 17). Enquanto todos planam no ar e brincam nos galhos das árvores, um outro personagem, Coruja, permanece confinado em casa, num exílio íntimo interrompido somente pelos pequenos poemas que escreve e envia pelo celular para “pessoas ilusórias, mas reais, pessoas que sua imaginação criava” (p. 39).
São 70 poemetos (alguns breves como aforismos) que o leitor encontra agrupados em 13 blocos colocados entre os 13 curtos capítulos. A justaposição de trechos narrativos em prosa e pequenas sequências de poemas curtos, sem relação clara entre si, gera um ritmo de leitura próprio, que desafia o leitor a uma apreensão dos fragmentos em um compósito coeso. Essa dinâmica de leitura do todo e das partes não cessa ao longo de todo o livro, garantindo a abertura do sentido do texto. Após a palavra “Fim”, encontra-se, ainda, um poema um pouco mais longo, que contribui para ampliar o quadro dos gêneros literários presentes em “O sol partido”.
Essa estrutura fragmentada não é fortuita e reforça a temática da separação dos amigos, que também se expressa no título: “sol partido” porque, ícone e síntese da cidade e de uma época da vida, a estrela sob a qual todos se reuniam, e em torno da qual tinham suas experiências de descoberta, em algum momento se quebrou (partiu-se) ou se foi com o anoitecer (partiu). Imagens ligadas ao céu são frequentes no livro, muitas vezes associadas com a subjetividade ou a emoção: “O sol é vermelho e estava dentro do meu coração” (p. 23). Na mesma linha, alguns poemas se destacam, como este: “Tempestade de sol / Banhando a manhã / Espalhando amarelo / Colorindo de azul / de verde / de dia / o coração vermelho do homem sem guia” (p. 50).
O afastamento dos amigos que um dia foram tão próximos permeia vários dos poemas, como o da página 71: “Caminhamos por / caminhos diferentes. Sonhamos com / ninhos diferentes / nos portos seguros / que, juntos, um dia, desenhamos”. O narrador, por sua vez, vê a si e a seu grupo de companheiros como um bando de pássaros que aprendem a voar juntos – “Só são livres os pássaros acompanhados” (p. 13) –, mas logo percebe que cada um precisa partir para sua viagem individual.
“O sol partido” é um livro sobre certos momentos de felicidade simples e efêmera e sobre uma fase da vida em que a despreocupação é a tônica dos pensamentos e dos dias de quem tem o futuro pela frente. Faz pensar, com alguma nostalgia, em tardes de cerveja, música e poesia: “Meu amigo chegou trazendo dúzias de laranjas (...) Sentamos nós três (...) e conversamos durante a tarde sem fim. Conversamos sobre a alegria das crianças, sobre a força do coração, o perigo dos sonhos, a amizade entre povos diferentes e o fim da vida (...)” (p. 38).