2018 © Teresa Maia



#Crônica 1
Raramente meu sobrinho vem me visitar. Uma certa manhã, ele apareceu aqui de repente. Ele tem dez anos. Chegou tão cedo que entrou no meu quarto me acordando. “Tio, vamos brincar no parquinho?”. O parquinho, há quanto tempo eu não ia lá. Nem me lembrava mais da sombra da mangueira e da areia que cobria aquele campinho.
Mal chegamos e começamos a desbravá-lo, cavando na areia um buraco muito grande. Usávamos uma pá nova que pegamos na garagem, mas não conseguimos tirar tudo, até que o buraco foi aumentando à medida que as coisas apareciam. Deixei então a pá encostada na parede e comecei a cavar com as minhas próprias mãos. Logo percebi que tinha anoitecido rapidamente, desde cedo estávamos cavando. Foi quando comecei a encontrar os primeiros objetos.
O relógio preto que meu pai me deu de presente quando fiz dez anos, a foto de minha primeira namorada, a bola de basquete, o badogue com que eu brincava atirando pedras, o murro que eu levei na cara do meu melhor amigo, os carrinhos de ferro que eu colecionava, o grito da professora, meu sonho de ser astronauta, meus óculos quebrados, a imagem que tinha de Deus, o medo da morte, todos os fantasmas que vinham me atormentar à noite, as músicas de Moraes Moreira, o fim do mundo, o mendigo que morreu na porta do meu prédio, o sorriso de minha irmã, minhas primeiras observações sobre o sol, o escuro das escadas vazias, as mulheres velhas que me assustavam, as cores dos potes de tinta com que eu pintava, a barraquinha de camping...
Continuamos cavando, até que meu sobrinho olhou para tudo aquilo que estava exposto e disse: “Todas essas coisas não são mais suas. De quem são?”. Eu também não sabia, mas não pude encará-lo. Somente uma decisão me restaria naquele momento: eu nunca mais exumaria minhas memórias como se fossem uma brincadeira qualquer.

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#Crônica 2
O pião se cansa de girar sem sentido. Engana-se quem acredita que o pião desgosta do trabalho. Ele apenas sofre por girar sem ter um estímulo instigante e sedutor. Tudo bem, se é pra girar assim mesmo que seja dessa forma. De maneira indisposta seu giro se repete, dia a dia, até o término de cada jornada. Conforma-se do cansaço e duvida se realmente gira para onde gostaria de estar indo.
Envolto em pensamentos conflitantes se chega aos objetivos almejados. O pião geralmente prefere deixar seus devaneios se diluírem nos bares ou em outras saídas passageiras. Esquece de si mesmo ao embriagar-se numa fuga controlada sobre o real sentido da vida. Sabe somente que o colorido dos teus tons lhe alertam de uma só coisa: as cores se desfigurarão lá na frente.
De tempos em tempos o pião olha fixamente para o céu escuro pontilhado com pequenas luzes vivas das estrelas mortas. Olha como quem busca o que não sabe. A reunião de astros lhe exorta para a aventura do risco. Mas a astrologia está ausente dos seus próprios mapas internos. Seu monótono cotidiano se rende à repetição hipnotizante, fazendo-o nem mais vislumbrar o lugar onde poderia sorrir de verdade.

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#Afetos, ausências e fragmentos 1 
Está escuro, profundamente escuro.
Caminho de uma cor só. 
Homogêneo, maciço, irreversível. 
Linha fina apontada para o que não há. 
É nesse breu que sempre nasce um novo brilho.

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#Crônica 3
O bar é a casa dos fugitivos da noite. Lar irresistível. Lugar de aconchego, do carinho do garçom e de todos os pensamentos que circulam livres e voltam ao mesmo ponto fixo. Melhor do que um bar só outro tão bom. E o melhor bar não é o bar de prestígio. É o bar sem cara definida. Do garçom sem treinamento  adequado e que serve perfeitamente no improviso. Aquele em que ninguém das mesas ao lado quer conversar com você e quando você olha para o lado sente também o mesmo enfado. O bar de verdade tem que ter mistério. Clima um pouco tenso. É um vento que bate numa tarde de dia de semana. Esse bar é o que vende o cigarro a retalho e quando solicitamos chega um bem fuleiro, totalmente de acordo com a ocasião. Mas há uma mágica qualquer no bar sem cara que o torna imbatível. É alguma coisa que nunca descobri o que é. Algo que me obriga a ficar a tarde inteira refletindo, mirando lá no fundo o horizonte enquanto vejo a cerveja gelada caindo toda amarela no inigualável copo americano.

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#Crônica 4
Precisamos de bola de futebol e não de armas. Precisamos de roda gigante e não de tiros. De palhaços livres, de dominó, de rodas de violão. Precisamos armar festas surpresas, piquenique e pular da cachoeira. Precisamos armar pontes de amor. Conhecer lugares aonde nunca fomos. Fazer novos amigos e unir velhos inimigos. 
Precisamos de escovas de dentes novas para sorrir e fugir da rotina. Um caminho sem volta em direção ao imprevisível. Precisamos acreditar no sol e na chuva. Precisamos deixar nossa razão morrer e aceitar o diferente como algo complementar. Esquecer de tomar o remédio diário. Tomar banho de mar nu. 
Precisamos não de armas, mas de feijoada. Convidar quem não foi convidado. Dormir de barriga cheia e acordar amanhã com a mesma fome de vida. O mundo precisa de vagabundos e não de máquinas de bater ponto. Não precisamos matar uns ao outros. 
Precisamos de palito de fósforo para acender a chama da fogueira. Sentar ao lado do estranho e lhe contar um segredo. Precisamos da palavra. Do coração de cada um. Dar as mãos e construir presídios vazios onde o ódio vai dormir sozinho.
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#Crônica 5
Viajei ara o Rio Grande do Sul a convite de uma amiga artesã que se dispôs a mostrar a cidade de Porto Alegre inteirinha de cima a baixo. Eu nunca havia ido ao sul do país. Ao chegar lá, liguei logo para ela e, para minha surpresa, ela simplesmente me disse que teve que deixar a cidade por quinze dias porque seu cachorro havia morrido de infarto. 
De última hora, ela teve que viajar até Parnamirim, no norte do Ceará, na companhia da afilhada de treze anos que era apaixonada pelo cachorro. O enterro seria lá. No aeroporto, fiquei atônito. Mesmo assim, respirei fundo e fui ao parque central da cidade. Comprei um chimarrão especial numa barraca metálica e sentei sozinho no banco para pensar no que iria fazer na cidade sem minha amiga. 
De repente começou a chover. Um menino passou de patins. Uma mulher passou correndo atrás de uma criança que corria ligeiro. Um pato na lagoa emitia sons que não incomodavam. A chuva cessou e sol apareceu timidamente. Um ônibus vermelho parou no ponto e duas pessoas desceram sem apreciar o verde do parque. 
O dia finalmente ficou bem claro quando as nuvens brancas desapareceram do céu. Foi então que percebi: estar em Porto Alegre ou em qualquer outro lugar naquele momento não fazia mais a menor diferença. Só  havia o sol batendo em mim, o sol, o mesmo em todo o mundo. O sol amigo. Amigo de todos que estão vivenciando uma grande solidão.

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